quinta-feira, 25 de outubro de 2007

O SILÊNCIO DAS SEREIAS

Assim se prova que mesmo os meios mais insuficientes,
infantis, podem servir para nos salvar.


Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e fez-se acorrentar ao mastro do navio. Naturalmente, todos os viajantes poderiam ter feito o mesmo (a não ser aqueles a quem as sereias atraíam à dis­tância), mas o mundo inteiro sabia que era um meio inútil. O canto das sereias atravessava tudo e a paixão dos seduzidos seria capaz de rebentar mais do que as correntes e o mastro. Mas Ulisses não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido falar destas coisas, confiou plenamente na cera e no molho de correntes. Cheio da alegria inocente que lhe davam os seus pequenos meios, foi ao encontro das sereias.
As sereias têm no entanto uma arma mais terrível ainda que o canto: o seu silêncio. Apesar de nunca ter acontecido, é possível imaginar que alguém escapasse aos seus cantos; mas do seu silêncio, sem dúvida que não. Nada há na terra que possa resistir tocado da sensação de as ter vencido com as próprias forças e da vaidade que dela resulta.
E, de facto, quando Ulisses passou, as terríveis cantoras não cantaram. Ou porque pensaram que este adversário só podia ser vencido pelo silêncio, ou porque a grande alegria no rosto de Ulisses, que só pensava na cera e nas correntes, as fez esquecer todos os cantos.
Ulisses, contudo, se é que assim se pode exprimir, não ouviu o seu silêncio; pensou que elas cantavam e que ele estava protegido contra o perigo de as ouvir. Por um instante, viu como elas mexiam o pescoço, a respiração profunda, os olhos em lágrimas, a boca entreaberta e pensou que tudo isto acompanhava as melodias que, em volta, ecoavam inauditas. Mas de imediato tudo se desvaneceu dos seus olhos fixos na distância, as sereias esfumaram-se do seu horizonte e precisamente quando mais perto delas esteve é que nada mais soube delas.
Mas elas, mais belas que nunca, estiravam-se, contorciam-se, soltavam ao vento os cabelos húmidos e abriam as garras contra os rochedos. Já não queriam seduzir, queriam apenas fixar, o mais demoradamente possível, o brilho dos grandes olhos de Ulisses.
Se as sereias tivessem consciência, teriam desaparecido naquele dia. Mas permaneceram e Ulisses escapou-se-lhes.
A tradição acrescenta ainda um comentário à história. Diz-se que Ulisses era tão astuto, tão raposa ladina, que nem a deusa do destino era capaz de lhe ler a alma. Talvez ele soubesse, ainda que isto seja inconcebível ao entendimento humano, que as sereias estavam em silêncio e tivesse feito do seu fingimento um escudo contra os deuses e contra elas.»

Franz Kafka, “Das Schweigen der Sirenen”, tradução de Marco Alexandre Rebelo in O Espaço sem Volta, Lisboa, FCSH-Universidade Nova de Lisboa, 2005, pp. 62-64.

2 comentários:

éme. disse...

Pois eu diria que Ulisses sabia bem que há milhões de destinos possíveis e cada um de nós só tem de dar a mão-de-frente ao seu e levá-lo como e para onde quer!
O complicado, nisto de agarrar o tal Destino, é ter de assumir em pleno o caminho que lhe vamos dando, as escolhas todas, os desejos, as esperas, as mudanças, as decisões... mas também deve ser por isso que isto de nos fazermos à viagem dos dias nos leva a meter mãos à obra e ir, não?
Quanto a serem, por vezes (ou quase sempre) os meios mais simples aqueles que nos podem salvar... :) pois cá está, também acredito que sim!

(deve ser por isso que há muito quem diga que fico feliz com as coisas mais simplinhas da vida... é bem verdade, pois fico! porque acredito nisto, que é nas mais simples -e, às vezes- pequeninas coisas dos dias, dos outros, das histórias, que se encontra o melhor de tudo e de nós!... e ainda que a minha história não seja grande como a que de Ulisses se conta... oh, tb fico como dizia M. Bubber, no fim, não me vão pedir contas por eu não ter sido Ulisses, Penélope, Joaquina ou Arlequim, vão-me pedir contas se eu não for, profundamente, esta que sou!)

Voltando a esta Urbe que nos acolhe... andamos a precisar de lhe dar um cólinho, um embalo, um afago, andamos a precisar de lhe sacudir vícios, de a empurrar para fora do limbo em que está meio aquietada... vamos?! destapar-lhe os ouvidos e soprar-lhe as asas, levá-la a abrir, de novo, a voz toda e gritar! vamos? Colocar a Cidade em Marcha! Convidá-la a deixar de esperar! Voltar a Acreditar!

Anónimo disse...

Gostei muito... mesmo!