terça-feira, 23 de outubro de 2007

Uma Campanha Alegre

Há em Portugal quatro partidos: o Partido Histórico, o Regenerador, o Reformista, e o Constituinte. Há ainda outros, mas anónimos, conhecidos apenas de algumas famílias. Os quatro partidos oficiais, com jornal e porta aberta para a rua, vivem num perpétuo antagonismo, irreconciliáveis, latindo ardentemente uns contra os outros de dentro dos seus artigos de fundo. Tem-se tentado uma pacificação, uma união. Impossível! eles só possuem de comum a lama do Chiado que todos pisam e a Arcada que a todos cobre. Quais são as irritadas divergências e princípios que os separam? — Vejamos:
O Partido Regenerador é constitucional, monárquico, intimamente monárquico, e lembra nos seus jornais a necessidade da economia.
O Partido Histórico é constitucional, imensamente monárquico, e prova irrefutavelmente a urgência da economia.
O Partido Constituinte é constitucional, monárquico, e dá subida atenção à economia.
O Partido Reformista é monárquico, é constitucional, e doidinho pela economia!
Todos os quatro são católicos.
Todos os quatro são centralizadores.
Todos os quatro têm o mesmo afecto à ordem.
Todos os quatro querem o progresso, e citam a Bélgica.
Todos os quatro estimam a liberdade.
Quais são então as desinteligências? — Profundas! Assim, por exemplo, a ideia de liberdade entendem-na de diversos modos.
O Partido Histórico diz gravemente que é necessário respeitar as liberdades públicas. O Partido Regenerador nega, nega numa divergência resoluta, provando com abundância de argumentos que o que se deve respeitar são — as públicas liberdades.
A conflagração é manifesta!


Na acção governamental as dissensões são perpétuas. Assim o Partido Histórico propõe um imposto. Porque, não há remédio, é necessário pagar a religião, o exército, a centralização, a lista civil, a diplomacia... — Propõe um imposto.
«Caminhamos para uma ruína! — exclama o presidente do Conselho. — O défice cresce! O País está pobre! A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc....»
Mas então o Partido Regenerador, que está na oposição, brame de desespero, reúne o seu centro. As faces luzem de suor, os cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o colarinho na atitude dum homem que vê desmoronar-se a pátria!
— Como assim! — exclamam todos — mais impostos!?
E então contra o imposto escrevem-se artigos, elaboram-se discursos, tramam-se votações! Por toda a Lisboa rodam carruagens de aluguel, levando, a 300 réis por corrida, inimigos do imposto! Prepara-se o xeque ao Ministério histórico… Zás! cai o Ministério histórico!
E ao outro dia, o Partido Regenerador, no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de São Bento. Esta mudança alterou tudo: os fundos decresceram mais, as transacções diminuíram mais, a opinião descreu mais, a moralidade pública abateu mais — mas finalmente caiu aquele Ministério desorganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.
Abre a sessão parlamentar. O novo Ministério regenerador vai falar.
Os senhores taquígrafos aparam as suas penas velozes. O telégrafo está vibrante de impaciência, para comunicar aos governadores civis e aos coronéis a regeneração da Pátria. Os senhores correios de secretaria têm os seus corcéis selados!
Porque, enfim, o Ministério regenerador vai dizer o seu programa, e todo o mundo se assoa com alegria e esperança!
— Tem a palavra o Sr. Presidente do Conselho.
— O novo presidente: «Um Ministério nefasto (apoiado, apoiado! — exclama a maioria histórica da véspera) caiu perante a reprovação do País inteiro. Porque, Senhor Presidente, o País está desorganizado, é necessário restaurar o crédito. É a única maneira de nos salvarmos...»
Murmúrios. Vozes: Ouçam! Ouçam!
«… É por isso que eu peço que entre já em discussão… (atenção ávida que faz palpitar debaixo dos fraques o coração da maioria…) que entre em discussão — imposto que temos a honra, etc. (apoiado, apoiado!)»
E nessa noite reúne-se o centro histórico, ontem no ministério, hoje na oposição. Todos estão lúgubres.
— «Meus senhores — diz o presidente, com voz cava. — O País está perdido! O ministério regenerador ainda ontem subiu ao poder e doze horas depois já entra pelo caminho da anarquia e da opressão propondo um imposto! Empreguemos todas as nossas forças em poupar o País a esta última desgraça! Guerra ao imposto!...»
Não, não! com divergências tão profundas é impossível a conciliação dos partidos.

Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre
(Enviado por Marco Rebelo)

1 comentário:

éme. disse...

Farpas que desde algum dia perto de 1870 chegam aqui tão frescas, não?!...
"... é impossível a conciliação..." pois eu cá já julgo que impossível é continuarmos por aqui mais tempo tão quietos, mudos e quedos cantando tão bem calados!
(Apre, como diria a minha avó! Irra, se estivesse tão zangada que nem conseguisse silenciar a ira!)
;)